sexta-feira, 6 de março de 2015

A Crise Energética de 2015!

Vivemos hoje uma crise grave no setor elétrico. Quer você queira ou não, quer o governo queira ou não, a crise existe, é real e já provocou um rombo bilionário sem precedentes, que nos leva a duas questões: 

como contornar a crise energética de curto prazo e como corrigir os fatores latentes que geraram as crises energética e financeira? 

As causas de ambas as crises têm raízes em um conjunto de fatos que isoladamente parecem ser inofensivos, mas que, em conjunto, criam um ambiente regulatório instável e de perigosos incentivos, os quais oferecem um real dano à economia e à sociedade.


O nosso sistema elétrico foi concebido para tirar proveito da vasta disponibilidade de recursos hídricos que temos. Quando os reservatórios estão cheios, a participação das hidrelétricas no atendimento ao consumo ultrapassa os 90%. 

Entretanto, como as vazões dos rios e chuvas são incertas, precisamos de termelétricas para complementar a operação e ajudar a economizar água em momentos de hidrologia adversa. Mas essas térmicas respondem por menos do que 30% do consumo.

O Brasil depende basicamente da gestão dos estoques de água nos seus reservatórios para atender ao consumo de eletricidade. 

Para enfrentarmos a alternância entre períodos úmidos e secos de maneira segura, os modelos computacionais utilizados pelo operador nacional do sistema (ONS) precisam representar fidedignamente o sistema elétrico e hídrico para simular o que pode acontecer em cada possível cenário hidrológico ao longo do ano.

Caminhamos para uma conjuntura onde a chance de termos que racionar já ultrapassa a incrível marca dos 50%

Em 2012, o sistema elétrico já havia dado um segundo alerta, depois de 2010, de que algo estava errado na maneira com que a operação dos reservatórios estava sendo realizada. 

O caso de 2012 é emblemático, pois iniciamos o ano com um recorde histórico de maior armazenamento (superior a 70%) e terminamos o ano também com um recorde histórico, porém inverso: o mais baixo armazenamento (cerca de 30%). 

O intrigante é que as afluências nesse ano não foram severamente secas, apenas um pouco abaixo da média. E então nos perguntamos: o que levou a esse esvaziamento dos reservatórios em 2012?

Parte dessa resposta está na maneira com que planejamos o uso da água dos reservatórios para produzir eletricidade. 

Os modelos computacionais de planejamento da operação utilizados pelo ONS atualmente sofrem para aproximar a realidade operativa de maneira satisfatória. Como resultado, o planejamento se torna míope e a operação estruturalmente arriscada.

Podemos resumir quatro pontos de melhorias para esses modelos que deveriam ser analisados. Os dois primeiros são de caráter técnico/computacional:

1 ­ diversas restrições operativas reais do sistema elétrico, tais como restrições de transmissão e segurança, restrições individuais de cada reservatório e cascata hídrica são extremamente simplificadas no modelo computacional que planeja o uso da água;

2 ­o modelo de previsão de afluências da região Nordeste superestima sistematicamente (há 20 anos) a quantidade de água que chega nesta região e o mesmo ocorre para a geração de energia proveniente das usinas de biomassa, pequenas hidrelétricas e eólicas. Já os dois últimos são de caráter técnico/regulatório:

3 ­ a regulação não emprega mecanismos eficientes de incentivo para que as empresas informem os dados técnicos mais precisos sobre suas usinas e, infelizmente, também não impõe que o ONS realize auditorias sistemáticas em muitos dos dados relevantes para garantir a aderência dos modelos à realidade e

4 ­por fim, os sistemáticos atrasos no cronograma de expansão e a não consideração deles nos modelos fazem com que estes não economizem água, imaginando um futuro onde a data de entrada em operação das novas usinas e linhas de transmissão serão sempre cumpridas.


No contexto atual, os modelos indicam sempre estoques de água mais otimistas do que deveriam, imaginando um futuro sempre mais farto e simples do que a realidade. 

Outro ponto relevante e pouco falado é a baixa eficiência de produção das hidros quando operadas com reservatórios vazios. 

Nesta situação, é necessário um volume maior de água, se comparado ao que seria necessário em níveis normais de armazenamento, para se produzir o mesmo Megawatt­hora de energia. 

Ou seja, quanto pior a situação, mais difícil e cara se torna a recuperação.

Desde julho de 2014 já temos indicações técnicas para empregar algum tipo de mecanismo preventivo de redução do consumo. 

Mas o governo nega qualquer possibilidade, apostando em uma reversão mesmo vivendo um cenário nunca antes visto. 

Hoje, infelizmente, caminhamos para uma conjuntura onde a chance de termos que racionar já ultrapassa a incrível marca psicológica dos 50%; dados recentemente divulgados por consultores especialistas que consideram, obviamente, hipóteses e dados diferentes dos oficiais em suas análises.

Quando não conhecemos algo, o padrão é sermos mais cautelosos do que o normal. 

O fato de estarmos lidando com uma situação de seca severa confirmada desde 2014 nos dá a prerrogativa de apostar na reversão ou nos impõe o dever de nos prepararmos para o pior? 

Se você é um pai de família que perde o emprego e, depois de um ano gastando as economias sem um novo emprego, você continuaria saindo para jantar e mantendo o seu antigo padrão de vida, como se nada estivesse acontecendo?

Diversos Estados já estão racionando água. 

Os principais reservatórios do Sudeste já tangenciam o limite crítico de 10% de segurança. 

Reservatórios importantes como o de Ilha Solteira ultrapassaram tal limite e as suas usinas foram desligadas. 

O grande problema agora é que não existe uma placa que avise o fim da linha. 

Não há uma metodologia oficial, transparente, reprodutível e auditada, para se calcular um índice de escassez energético que aponte para a necessidade ou não de um racionamento.

É o mesmo que não termos um índice de inflação para podermos reivindicar e pressionar governantes, com nossas próprias percepções. 

Em última análise, isso cria uma enorme distância entre agentes e governo, trazendo mais incerteza para um setor que depende de sua atratividade para se sustentar.

Alexandre Street é professor do Departamento de Engenharia Elétrica da PUC­Rio.

Fonte: Valor Economico